Paixão antiga, conheci como a maior parte da minha geração deve ter conhecido a capoeira, através do filme “Only the Strong“, que vi numa aula de história no 8º ano. Ficou cá dentro mais que curiosidade, ficou uma impressão no peito. Mas nessa altura era só um sonho distante… Já na faculdade voltei a cruzar-me com o som do berimbau. De novo a sensação no peito, mas também um sorriso nos lábios e o bater do pé ao som dos atabaques. Mas foi só em 2013 que finalmente comecei!
Poderia discorrer imenso sobre os benefícios da capoeira, muitos transversais a tantas outras modalidades como a dança e artes marciais. Mas há informação que chegue sobre este assunto. O que pretendo partilhar hoje é o impacto gigante que a prática da capoeira teve e tem na forma como trabalho, na direcção que o meu trabalho seguiu e nas coincidências (ou não) que vieram daí. A partir do momento em que comecei a pôr as mãos no chão ao ritmo dos instrumentos, à medida que percebi o vibrar das minhas cordas vocais nos cânticos e a organicidade da percussão no meu coração, tudo mudou. O meu corpo já não era só um veículo. Eu já não era só uma enorme cabeça pensante (era como me sentia, cabeça enorme num corpo frágil), era um todo. Era mãos, pés, pernas, braços, coração, cordas vocais, vértebras, dedos mindinhos, olhos…era tudo. Era eu. E esse sentido de inteiro, levou-me a novos rumos na minha prática clínica, na forma como me sinto e sinto a relação terapêutica, na procura de outros que como eu querem ser inteiros e não apenas cabeça ou partes do corpo.
O ocidente tem um pesada herança cartesiana, o famoso “penso logo existo” marcou uma profunda cisão entre a mente e o corpo, entre as emoções e as acções. Acredito que os desafios contemporâneos nos empurram para um resgate do nosso todo, da conexão interna . Que adianta ser cabeça pensante, intelectual, num corpo doente? Que adianta um corpo esculpido, completamente distanciado do sentir? E ainda, onde há, em todo este processo, lugar para a espiritualidade?
Hoje em dia ouvimos como nunca as expressões “atenção plena”, “estar presente”, “enraizar”, “mindfullness“. Não são novidades, apenas o foco da nossa atenção está mais disponível para o que nos traga alguma capacidade de fugir do corropio da vida. Mais consciência, mais vontade ser ser inteiro, de conseguir “parar o tempo”. A meditação e o yoga estão muito mais presentes no nosso quotidiano, nas conversas do dia-a-dia. E a capoeira? Bem, a capoeira é outra forma de fazer tudo isso. Vejamos: Nós jogamos em roda, ao som de instrumentos e cânticos que quase roçam o transe, batemos palmas e os jogadores deixam-se levar pelo ritmo e pela energia em volta. Os movimentos ora são junto ao chão, mais lentos ora são mais rápidos e aéreos, conforme manda o ritmo. Para que este diálogo aconteça, os jogadores têm que observar o outro e a si próprios, têm que decidir rápido, têm que se mover. Tudo acontece numa fracção de segundo que é a decisão do jogador. Este diálogo será tanto mais fluído quanto mais a prática e consciência do jogador. No início, pode parecer que apenas “dizemos” uma ou duas palavras, mas a dada altura, temos conversa!
Longe se substituir o que quer que seja, encaro a capoeira não apenas como um desporto, arte luta, manifestação cultural, mas como uma potente ferramenta de auto-conhecimento e de expressão relacional. E o axé… sente-se mesmo!
Ainda estou longe…ainda há partes do meu corpo e do meu sentir que não desafiei e que não conheço bem. Mas estou mais perto do que estava há 4 anos. E independentemente do que vier a seguir, reconheço o potencial desta arte, que carrega consigo tratados de guerra e paz, reclusão e liberdade, sangue e amor. História escrita nas entrelinhas, nos toques do berimbau, no ritmo, no povo, na vida. Não sei se exagero neste sentimento, talvez não tenha o direito de reivindicar a história também para mim…mas o meu coração já pertence à capoeira.
NOTA:
Obrigada ao meu professor José Correia “Goiaba” pelo profissionalismo e dedicação, ao meu mestre Robério Batista “Ratto”, pelo inspiração, conhecimentos e desafios. A todos os capoeiras, velhos mestres e jovens professores, de tantos grupos espalhados pelo mundo. Obrigada a quem respeita a herança cultural, a quem a divulga, a quem ensina e aprende com ela todos os dias.